Privilégio de viver na caverna

 Dia 16/03/2020, data em que sai pela última vez de casa para visitar um cliente e realizar uma reunião presencial. Última vez que andei de ônibus/metrô e caminhei pelas ruas da cidade. Que fui a um supermercado, farmácia e outro estabelecimento comercial. Desde então estou trancada em minha “caverna”.

Hoje faz exatamente um ano que minha vida passou do real para o virtual. Sem shows, sem jogos no Mineirão, sem festas, sem carnaval, sem encontros com a família ou amigos.

Eu sei que muitas pessoas já retomaram as vidas nesse período – voltaram a trabalhar presencialmente, viajaram, festejaram, passearam... Não julgo, cada um sabe da sua verdade e da sua realidade. 

Mas, eu optei por me manter caverna... por medo, por insegurança... por querer preservar quem eu amo. Por não estar disposta a jogar e apostar nessa loteria.

Alguns me chamaram de “paranoica”, de “bitolada” e outros, até de “privilegiada”, por poder permanecer em casa trabalhando, por não ter que enfrentar as ruas... 

E, nesse aspecto, até me sinto mesmo privilegiada por poder manter minha rotina de trabalho virtualmente – quer dizer, manter não, ampliar, afinal acho que nunca trabalhei tanto na minha vida. Sei que muitos, para não dizer a maioria não tiveram direito de escolha. Colocaram a vida em risco pelas necessidades que tinham. E quantos outros que estão a passar fome e perderam tudo. Eu tive escolha, tive condições de escolha. Sei, reconheço e agradeço esse privelégio que tive.

Mas, acho que me sentiria privilegiada mesmo se eu morasse em um país onde o governo tivesse levado a sério a gravidade da pandemia e tivesse se preparado para enfrentá-la de forma racional, organizada e não politizada.

Onde o governo não tivesse gastado milhões em um remédio sem eficácia comprovada ao invés de correr atrás de vacina.

Que orientasse as pessoas corretamente sobre medidas de segurança, ao invés de incentivá-las a simplesmente negar o que estava acontecendo.

Um governo que não estivesse alheio às mais de 200 e tantas mil vidas perdidas, que não debochasse de quem perdeu os seus avôs, pais, filhos e pessoas amadas.

Que acoelhesse e desse condições para que as pessoas não precisassem ficar expostas e tivessem mantidos os seus direitos básicos de moradia, alimentação, acesso à saúde, etc.

E, também, em um país onde as pessoas tivessem um pouco mais consciência e senso de coletividade e solidariedade, que não lotassem praias, cachoeiras e festas clandestinas todos os fins de semana.

Que não invadissem hospitais e agredissem os médicos. Ou simplesmente cumprissem regras básicas de distanciamento e uso de máscaras. 

Ah... e também onde as pessoas não furassem fila na hora de tomar a vacina, no mais clássico “jeitinho brasileiro de levar vantagem em tudo”. 

Seria um grande privilégio morar em um lugar onde as pessoas se respeitassem um pouco mais, respeitassem a própria vida e a vida dos demais. 

Onde a vacinação fosse prioridade e as pessoas pudessem realmente voltar a viver de forma segura novamente, fazendo a economia “girar”...

Dia 16/03/2021 – data em que o governo de Minas decreta “onda roxa” e medidas mais restritivas em todo o Estado. Um ano se passou. A vacina chegou. Mas não há esperanças de voltar à vida normal de forma segura. Caminhamos para quase 300 mil mortes no país.

A terra deu uma volta inteira. E eu me mantenho apenas com o privilégio de habitar a minha caverna, cuidar daqueles que amo e viver virtualmente.

Comentários

Andrea Silveira disse…
Infelizmente o nosso novo normal será continuarmos habitando em nossas "cavernas" na tentativa de preservar a vida de quem amamos, mantendo distanciamento e fazendo a nossa parte.
E assistindo o Governa desfazendo da população, as pessoas alheias ao sofrimento do próximo e sem vermos a luz no fim do túnel...
Seguimos com o privilégio de vermos até quando vamos conseguir sobreviver em meio a esse caos...
:,(